A militância de esquerda está perplexa, cada vez mais distante do clamor popular, e corre o risco de ser engolida pela direita reacionária e golpista
por Ciro
Gomes
Ao pensar em nossos
desafios presentes e futuros, tento entender as perplexidades que fizeram, em
pouco mais de uma década, nossa militância progressista e de esquerda deixar de
ser estilingue, baladeira para os cearenses, e tornar-se vitrine. O moralismo
de goela, é indisfarçável, virou-se contra seus apologistas e desde o assim
chamado “mensalão” o grosso da militância de esquerda apanha no canto do ringue
com a denúncia multifacetada da corrupção, para ficar no exemplo mais
malcheiroso.
Não é só isso. Valores
como ordem, segurança pública, austeridade fiscal e comportamental, eficiência,
juntam-se à moralidade como temas que foram ou têm sido usurpados pela direita
reacionária, sem que a nossa militância de esquerda reaja ou até mesmo se dê
conta. Na verdade, ainda estamos sob a influência de uma geração que viu esses
valores serem agitados pelo pensamento golpista, quando não truculento, para
justificar a ruptura da ordem democrática e do Estado de direito e as violações
chocantes das mínimas liberdades e franquias inerentes ao ser humano.
Compreende-se, portanto. Não se justifica mais, entretanto, sob pena de
desertarmos da agenda popular e cairmos de novo no equívoco de transferir valores
universais e progressistas à militância reacionária. Pior, sob pena de
pautarmos nossa prática pela forma vesga com que o mundo conservador interpreta
esses valores como creio, comovidamente, que fazemos hoje.
Tomemos a forma com que,
perplexa e atabalhoadamente, boa parte de nossas autoridades reagiu à violência
física de pequenos grupos protofascistas infiltrados nas manifestações
populares. Uma forçada tolerância, uma inibição desrespeitosa da polícia, um
descumprimento generalizado da lei que, ao lado de garantir plena liberdade de
manifestação, garante também o direito de ir e vir nas vias públicas, a
incolumidade de seus patrimônios públicos ou privados, a inviolabilidade do
domicílio, mesmo que seja de um político impopular, a eleição de prioridades
por aqueles que têm legitimidade para tanto controladas pelas instituições da
democracia. Crimes de ação pública cometidos à frente das câmeras de tevê, em
vez de resultarem no devido procedimento legal, trazem integrantes
politiqueiros, felizmente ínfima minoria, do Ministério Público à ribalta com
um discurso de demagogia pura, enquanto pequenos comerciantes choram impotentes
a destruição de suas lojas e ao assalto de suas mercadorias.
Daqui a pouco, e em meio
às manifestações já surgiram os primeiros cartazes, o povo começará a chamar de
volta os militares. Ou nossa demagogia revogará a história para desconhecer as
imensas manifestações populares que antecederam 1964 sob o jargão da Marcha com
Deus e a Liberdade? Estamos muito longe disso, claro, mas minha reflexão é
sobre valores. E esses só se afirmam na militância permanente e no exemplo.
Ao transpor essa mesma
inquietação para a administração pública, de novo encontramos a perplexidade a
nos colocar cada vez mais distantes do clamor popular. Ao lado da saúde, o
desejo generalizado da família brasileira em toda parte é uma resposta à
explosão relativamente recente dos indicadores de violência, especialmente dos
assaltos à mão armada e dos homicídios. Incrível. Não há uma única iniciativa
institucional ou administrativa que guarde a mais remota coerência ou proporção
com a agenda do medo que se dissemina pelo País afora. No nosso vácuo, ideias
toscas ganham popularidade imensa. A redução da maioridade penal ou a pena de
morte são as respostas da reação. E as nossas?
Na economia não é
diferente. Ao contrário, aqui se pratica o crime perfeito. Ou a tentativa dele.
O mundo reacionário colocou a esquerda quase toda na defensa e prática de seu
modo de interpretar o equilíbrio fiscal, austeridade monetária e integração
internacional. Aqui a tragédia cobrará um preço histórico. O atual e
inexplicável aumento de meio ponto porcentual na taxa de juros gera uma
excedente no gasto corrente do País de cerca de 8 bilhões de reais por ano.
Valores... Coordenação
estratégica do governo, iniciativa privada e academia para executar um projeto
pactuado de desenvolvimento. Substituição de importações, compras
governamentais, desenvolvimento regional, legislação antitruste, crítica aos
atuais marcos de propriedade intelectual e remessa de lucros... Heresia pura?
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